A Fuga de Adhemar de Barros

Por CARLOS LARANJEIRA, Jornalista e Autor de livros.

 

INTRODUÇÃO

Nos anos 50, quando São Paulo começava a consolidar o desenvolvimento econômico, com milhares de indústrias e um comércio pujante, ocorreram histórias de tragédias, dramas, não só de famílias provenientes de outros países, mas daqui mesmo: uma delas Família Barros, do interior do estado, cujo filho de maior expressão, Adhemar de Barros, seria interventor no estado, fundador de um partido político, o PSP, governador três vezes, candidato a presidente da República e prefeito da capital .Ele entra em colisão com a família Mesquita, proprietária do Estadão, jornal de maior circulação à época no estado de São Paulo. Essa historia agora você vai ler.

CAPÍTULO I

Em 1950, o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, é apontado como o politico mais popular no Estado em condições não só de eleger o sucessor como ele próprio presidente da República.

"É capaz de eleger um poste", diziam.

Adhemar torna-se sensível ao apelo do publico. Primeiro trata de eleger o sucessor, em 1950, que seria o professor de filosofia e direito Miguel Reale, membro da Ação Integralista Brasileira, movimento fascista fundado pelo jornalista Plínio Salgado, mas desconfiado, presumindo que podia ser traído por Reale, homem cuja formação intelectual era mais qualificada, resolve trocar de candidato. E, como se ele fosse o dono do PSP, que havia fundado na segunda metade dos anos 40, em colaboração com o deputado Café Filho, do Rio Grande do Norte, põe no lugar de Reale o então professor Lucas Nogueira Garcez, engenheiro da USP e, para vice de Lucas, indica o nome de Erlindo Salzano, um medico da cidade de Porto Ferreira, seu amigo leal.

Adhemar elege Lucas, e com o estado aparentemente em paz, viaja para o exterior com a mulher, Leonor Mendes de Barros. Ao retornar, reencontra o estado com a desordem instalada no partido, cujo comando Garcez havia assumido e evita com Adhemar conversar. Na tentativa de encontrar uma solução conciliatória para o caso, Adhemar procura Lucas Nogueira Garcez, este para surpresa dos adhemaristas não aceita a conversa, pois já havia lançado a candidatura oficial a prefeito do professor José Joaquim Cardoso de Melo, ex- prefeito da capital nos anos 30 e ex-deputado federal. Cardoso de Melo havia sido lançado candidato por decisão pessoal de Lucas independente da opinião do ex-governador. Adhemar então executa um movimento ardiloso: o vereador Jânio Quadros, do PDC, mesmo partido do vereador Franco Montoro, também pleiteia a candidatura de prefeito, mas lamenta não ter dinheiro suficiente para custear a candidatura, Adhemar então se propõe a financia-la. Assim, Jânio, candidato da oposição, vence a eleição e o governador Lucas Nogueira Garcez perde o comando no estado do Partido Social Progressista, que retorna aos braços de Adhemar.

Isso não evita que os dois - Garcez e Adhemar - suspendam relações de amizade e deixem de se falar. A despeito da aparente pouca idade, 50 anos, Adhemar já possuía uma enriquecida experiência. Ele começou a vida publica em 1934 como deputado estadual constituinte e em 1938 o chefe da ditadura do Estado Novo, Getúlio Vargas, o indicou Interventor Federal em São Paulo.

Contou Getúlio:

"A escolha de Adhemar de Barros para a interventoria em São Paulo foi uma prova de meu esforço de dar ao Brasil novos líderes. Adhemar fora me apresentado não me recordo por quem (Benedito Valadares) e passara a visitar-me frequentemente no palácio, trazendo notícias de São Paulo. Ora vinha com uma novidade sobre a política ora com detalhes sobre o progresso da indústria no estado bandeirante. Com o tempo as visitas se tornaram mais repetidas de sorte que eu ficava ao par de tudo o que acontecia Em São Lourenço, convidei-o apenas para interventor e tracei-lhe as diretrizes que deveria tomar. Não o conhecia muito bem e, era necessário, portanto, fazer-lhe algumas observações."

(O repórter pergunta se Adhemar foi indicado por alguém)

"Não, Mas eu suspeito que ele era protegido de Filinto (Müller)!"

Essa experiência de interventor trouxe-lhe um enfrentamento: em 1940, enraivecido com o jornal O Estado de São Paulo, da família Mesquita, que insistia em contestar suas ações, Vargas orientou Adhemar a garantir a intervenção do governo federal no jornal. Adhemar assim agiu e se recusou a seguir o conselho de Júlio Mesquita, que alegou a prisão do genro, Armando de Sales Oliveira, candidato a presidente, para enfatizar perseguição de Vargas à família. O ex-governador teve a humildade de admitir que Júlio Mesquita podia estar muito certo, mas ele era delegado do governo federal em São Paulo, então as ordens do chefe, Getúlio Vargas, teriam que ser cumpridas, em seguida alegou que não podia consentir o pedido de Mesquita, de evitar a intervenção no jornal.

O tempo passa depressa demais. Em 1954, o prefeito Jânio Quadros concorre à eleição de governador e vence o concorrente, Adhemar de Barros, por pequena margem de votos. Não satisfeito, guarda mágoas de Adhemar contra quem, conduzindo uma vassoura, símbolo da sua luta anticorrupção, insiste em continuar insidiosa campanha conra o adversário.

Ora, a campanha de Jânio para prefeito, em 1953, havia sido financiada por Adhemar, Jânio então não tinha motivo para maltratar ou ofender o ex-governador. Mas polêmico, dado a porres homéricos, homem imprevisível, repentino, alia-se ao jornalista Paulo Duarte, que se considerava "filho espiritual" de Júlio Mesquita, Paulo então ávido por vingança contra Vargas e, por extensão, a Adhemar de Barros por causa do confisco do Estadão.

Nessa época, o jornal começava a ser chamado de Estadão por causa de sua farta edição dominical, recheada de pequenos e grandes anúncios do comércio que se esparramava por ruas, praças e becos inclusive de bairros periféricos como do Pari e do Brás, na Zona Norte da cidade. A sua circulação aos domingos superava 200 mil exemplares e rara a família de classe média e classe média alta que não o lesse.

Não, não era apenas o confisco do jornal que representava um golpe à família. Os Mesquitas não se conformavam também com a prisão de Armando Sales Oliveira, genro de Júlio, ex-governador e um dos criadores da USP, por haver insistido em continuar candidato a presidente em 1937 e com a prisão e exílio de Júlio Mesquita Filho. A família então infunde na alma o sentimento de ódio a Vargas e Getúlio e insufla esse sentimento nos seus jornalistas, colaboradores e leitores.

Em 1945, Vargas é expulso pelo Exército do poder e passa a viver em São Borja, interior do Rio Grande do Sul, onde Adhemar de Barros vai busca-lo para reintroduzi-lo na política O poeta César Dias Baptista, secretário particular de Adhemar, deixou uma correspondência na qual afirma que nesses encontros Getúlio e Adhemar realizaram um acordo verbal por meio do qual em 1950 Adhemar ajudaria Vargas a se eleger presidente e Getúlio retribuiria o auxílio ajudando Adhemar em 1955. Mas a política é uma caixinha de surpresas. Em agosto de 1954, Vargas suicida-se com um tiro no peito depois de ser acusado pelas Forças Armadas de ser conivente com Gregório Fortunato, chefe de sua Guarda Pessoal, de arquitetar o plano no qual morreu o major Rubem Vaz, para matar o jornalista e deputado Carlos Lacerda.

Com o suicídio de Getúlio, Adhemar chega sozinho à eleição presidencial de 1955. O governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, que elogiava e manifestava consideração e apreço pelo político paulista, seu colega de medicina, não lhe dá apoio e resolve sair candidato. Nem mesmo Café Filho, seu colega de partido, que assumiu a Presidência com o suicídio de Getúlio, sai em favor de sua candidatura.

Sem apoios expressivos, Adhemar contrata um escritório de publicidade o qual cria o cinejornal Bandeirante na Tela que cultivava a imagem de homem empreendedor, assim, ele cunha expressões como "Para a frente e para o alto", "Fé em Deus e pé na tábua" e põe a candidatura presidencial nas ruas. Por onde passa, Adhemar distribui um panfleto com uma pergunta como título "Quem fez mais pelo Brasil?" Nesse panfleto, ele convidava o eleitor a votar a favor do Brasil, depois de comparar as realizações dos quatro candidatos: dele próprio, de Juscelino Kubitschek, Juarez Távora e Plínio Salgado. O seu conjunto de realizações era o maior.

Corajoso, Barros não teme seus inimigos, alguns poderosos como o governador Jânio Quadros, a quem havia ajudado em 1953 na eleição para prefeito da capital; o jornal O Estado de S. Paulo e o jornalista Paulo Duarte, um dos mais influentes do estado. Adhemar considera-se um homem destemido então seus adversários deveriam evitá-lo, mas as coisas não sucedem bem assim.

CAPÍTULO II

A dois meses da eleição de presidente, o panfletário Paulo Duarte escreve um artigo, por meio do qual afirma que em 1950 Adhemar de Barros, então governador, recebera uma urna marajoara de presente para o Museu Paulista, "mas a desviou, dela se apropriando."

O artigo gera grande repercussão e Paulo Duarte dirige petição à Procuradoria Geral de Justiça, sustentando a denúncia. Em favor do jornalista, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, professor da USP, exagera na avaliação da peça de cerâmica produzida pelos índios da tribo`Marajoara da ilha de Marajó . Diz ser a urna uma peça de valor histórico, então se estabelece uma confusão. Para desfazê-la e esclarecer o caso, acompanhado com interesse pela imprensa, o procurador de Justiça manda instaurar inquérito e pede para ouvir o autor do suposto crime. Barros comparece à Justiça, nega sua responsabilidade e diz estar havendo um engano: a peça que recebera não é a mesma doada ao Museu Paulista. O acusado prova a sua inocência, mas não evita a repercussão negativa que a denúncia causa à sua candidatura, então nesse vai e vem, disse não disse, são realizadas as eleições: abertas as urnas e apurados os votos, ele fica em terceiro lugar, atrás de Juscelino Kubitscheck e Juarez Távora.

Concluídas as eleições, pensava-se que a paz voltaria à política, todavia para surpresa da maioria da população e a despeito de Adhemar ter sido absolvido do processo da urna marajoara, Paulo Duarte resolve escrever um novo artigo

Nesse ano, de 1955, São Paulo não é nem em sonho a cidade que viria a ser, 70 anos depois. Ruas servidas por bondes, a população de dois milhões de habitantes cresce e beira os três milhões, correntes migratórias especialmente do Nordeste brasileiro aumentam, trazendo mais e mais pessoas atraídas pela possibilidade de progredirem no mercado de trabalho inclusive na construção civil, que ergue os chamados edifícios arranha céu, onde se instalam sedes de instituições financeiras.

A plantação e o comércio do café continuam como mola propulsora do desenvolvimento, e os lucros auferidos por fazendeiros dão origem a elegantes mansões e casas de luxo. Do mesmo modo o comerciante de café, que compra do fazendeiro e revende o produto nas praças de Santos e Rio de Janeiro, onde funcionavam as "casas estrangeiras" sobretudo inglesas.

Vamos leitor retornar ao ano de 1955.

Paulo Duarte era advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, diretor do Insituo de Pré-História da USP e jornalista autodidata que, ao trabalhar no jornal O Estado de S. Paulo, havia se tornado amigo de todas as horas de Júlio Mesquita Filho, de quem se considerava "filho espiritual," então, é irrelevante salientar que pretendeu "tomar as dores" do amigo. Mas, é como panfletário que mais se realiza. Ele adora polemizar assim como Carlos Lacerda, Hipólito José da Costa, Evaristo da Veiga e Edmundo Bittencourt. Movido então pelo sentimento de ódio a Adhemar, consegue sensibilizar o governador Jânio Quadros, que continua a realizar uma vasta campanha de desmoralização pessoal e administrativa de Adhemar e dá apoio para Duarte apresentar nova denúncia contra o ex-candidato à Presidência, quem acusa agora de crime de peculato no episódio da compra de caminhões Chevrolet para a Força Pública do estado.

Duarte envia petição à Procuradoria Geral de Justiça. Escreve na petição que Adhemar de Barros, ao responder pela Interventoria Federal de São Paulo durante a ditadura do Estado Novo, entre 1938-1941, teria cometido crime de peculato na compra de caminhões da Chevrolet para a Força Pública, não obstante anos antes a Justiça tivesse já realizado um julgamento que absolveu o acusado. A Procuradoria Geral acata a denúncia.de novo.

O advogado Cantídio Sampaio, ex-vereador e ex-prefeito da capital, desabafa:

Assustado, ele indaga:

Às 4 horas da manhã do dia 6 de março de 1956, Adhemar escuta pelo rádio o resultado do novo julgamento do processo: o Tribunal suspendera os seus direitos políticos por 10 anos e o condenara a dois anos de prisão. Essa notícia vem acompanhada de um detalhe: fora condenado por 16 votos contra 12, exatamente como previra o seu advogado.

CAPÍTULO III

A fisionomia do homem, habituada a narrar casos curiosos que suscitam risos, começa a mudar e denunciar um período de sofrimento e dor. Chegam ao apartamento os advogados e o advertem:

E justificam o conselho:

Adhemar começa então a sua mais incrível aventura. Despede-se da mulher, dos advogados e acompanhantes. Debaixo de uma árvore para evitar a luz que sai do poste, entra numa perua verde que o aguardava e diz para o motorista:

Quanto mais a perua avança, mais aparecem as primeiras luzes do sol que começam a inundar a cidade. Segue em direção ao bairro de Santo Amaro, manda comprar os jornais matutinos, ele é o assunto das manchetes:

Passam-se dois dias e como sempre acontece em semelhantes situações um de seus amigos confessa ter contado o seu refúgio a uma pessoa. Surpreso, Adhemar olha para o relógio, para o provável amigo e diz:

Realmente, a polícia que o procurara em casa já sabia onde ele estava.

Convencido de que não há mais tempo a perder, prepara-se para deixar o refúgio em Santo Amaro, traça o itinerário do novo esconderijo e contra a vontade dos advogados e familiares, que o aconselham a mudar de cidade, escapa. Horas depois chega a polícia:

Adhemar está voando num avião Douglas, de sua propriedade, com destino a Assunção, onde se hospeda no Grande Hotel Paraguai e pede asilo político ao governo desse país. Logo a notícia de sua fuga se espalha e chega ao governador Jânio Quadros, que oficia ao ministro da Justiça. Nereu Ramos, solicitando a sua extradição. O governador junta ao ofício a certidão da sentença condenatória, a ficha datiloscópica do sentenciado e o mandado de prisão.

No hotel, Adhemar recebe a notícia de que o asilo lhe fora concedido e começa a receber os jornais do Brasil, quase todos com manchetes sobre a fuga espetacular. No quinto dia em Assunção, Adhemar recebe a visita do embaixador da Argentina no Paraguai, César de Barros Hurtado:

O político paulista emudece. E ouve a recomendação do embaixador:

Duas horas depois, desce para jantar, ao sentar, um tenente do Exército paraguaio aproxima-se e diz:

Surpreso, Adhemar tenta contornar a situação.

Na porta do hotel, um automóvel os espera, o carro dá duas voltas no quarteirão e para, os ocupantes verificam que não estão sendo seguidos e vão em direção a um elegante bairro residencial onde um homem que os espera exclama:

É o embaixador argentino no Paraguai, que o abraça e insiste para ele sair de Assunção, pois a embaixada do Brasil acabara de entrar, no Ministério de Interior e Justiça, com pedido formal de sua extradição.

Será que a polícia paraguaia também já está à minha procura? - indaga.

O embaixador retorna ao hotel para buscar as malas de Adhemar, percebe que o seu apartamento está sendo vigiado, horas depois o diplomata retorna com roupas e jornais com notícias de sua nova fuga.

Em San Bernardino, cidade sem vida própria, Adhemar fica num sítio, onde dias após se instalar, é informado de que a polícia deixou de procurá-lo em Assunção. Assim, o embaixador e o fugitivo retornam a capital e ele fica escondido na casa de um brasileiro, do Rio Grande do Sul.

Adhemar se entrega a divagações e pergunta:

Por que este embaixador argentino está sempre disposto a me ajudar? Por que arrisca a sua carreira só por minha causa?

Se lhe serve de consolo, aqui vai a resposta: há tempos o diplomata havia se apaixonado por uma brasileira com quem acabou casando. No Rio de Janeiro, onde morava, participou de um comitê pró candidato Adhemar de Barros, ela lhe falava com entusiasmo tão grande a seu respeito que ele acabou virando adhemarista.

Na verdade, o argentino era mais que um adhemarista, era um anjo da guarda. Este, na noite seguinte, retorna excitado:

O avião em que Adhemar viajara ao Paraguai havia sido sequestrado pelas autoridades, então o embaixador sai à procura e encontra um táxi aéreo, cujo proprietário aceita levar o fugitivo a Bolívia por 1 mil dólares. É madrugada, o aviãozinho cruza o rio Paraguai, desce na vila de nome Colônia Filadelfia para reabastecer. Para surpresa dos ocupantes, não há gasolina à venda e o proprietário reabastece o aparelho com o combustível que levava em latas e garrafas. Três horas depois, o piloto avista um aglomerado de casas, é Santa Cruz de La Sierra, o aparelho toca o chão, seus ocupantes descem sãos e salvos.

Da estação de passageiros, Adhemar é encaminhado para a chefatura de polícia para prestar esclarecimentos, pede um papel de telegrama para enviar ao presidente da Bolívia, Paz Estenssoro, seu amigo pessoal. O telegrama é enviado e o asilo político é concedido.

Um dia antes da audiência com o presidente da Bolívia, Adhemar recebe a visita de Erlindo Salzano, médico que ele havia introduzido na política e em seu governo (1947-1950) nomeado presidente do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, depois Superintendente das Estâncias Hidrominerais e diretor do Departamento de Saúde Pública do Estado.. Natural de Porto Ferreira, onde hoje repousam as cinzas do seu corpo, Salzano não era homem rico nem poderoso, mas para Adhemar solícito e disponível. Pessoa humilde que tratava todos com irretocável educação e que exerceu um papel conciliador na briga de Barros com Garcez, quando este quis se apoderar do Partido Social Progressista (PSP), era leal ao amigo com quem honrava seus compromissos com retidão e responsabilidade.

Com Salzano chegam cartas, jornais, um mundo de informações sobre o andamento do habeas-corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal. Salzano lhe traz também duas notícias: a primeira, de que na audiência com o presidente Juscelino Kubitschek este o autorizara a dizer a Adhemar: "Fique sossegado, durma tranquilo e não espere nenhum mal." Barros sorri. A outra notícia: corre na Justiça paulista um novo pedido de prisão preventiva.

Salzano responde:

Nesse processo Adhemar conseguira provar sua inocência, mas não fora arquivado.

Chega o momento da audiência com o presidente Paz Estenssoro. Este o abraça fazendo-o sentar-se ao seu lado e pergunta qual o assunto que o traz até ele. Adhemar o conhecia desde o final dos anos 40, quando Estenssoro após fundar o Movimento Nacionalista Revolucionário da Bolívia foi perseguido pelas autoridades, exilou-se no Brasil e esteve em São Paulo, onde o governador Adhemar de Barros deu a ele e seu grupo todo o apoio.

Barros faz um relato das razões do processo. Estenssoro indaga:

Estenssoro pergunta de novo:

Adhemar repete o relato.

Estenssoro levanta-se e, tomando o volume do processo da extradição do político paulista, arremessa-o sobre a mesa.

Na terceira página, um ofício assinado pelo chanceler brasileiro José Carlos Macedo Soares que, dizendo-se autorizado pelo ministro da Justiça, Nereu Ramos, pede a sua detenção onde se encontrar para cumprimento de pena. Surpreso, Adhemar não consegue entender como o presidente Juscelino Kubitschek manda-lhe dizer para dormir tranquilo e aguardar com serenidade o julgamento do processo a que responde no Brasil e, ao mesmo tempo, determina a sua extradição?

O presidente da Bolívia levanta-se e avança em sua direção

Em seguida, erguendo a voz, declara:

Ainda o aconselha:

Adhemar sai do palácio com o semblante desfigurado, revelando o que ele pensa. A ideia de voltar para o Brasil preso, algemado, mexe com o estômago. Desiste de jantar, ele não consegue atinar com o recado do presidente Juscelino Kubitschek transmitido pelo seu colaborador Erlindo Salzano, que estivera pessoalmente dias antes, no Rio de Janeiro, com JK, amigo e colega de medicina, o qual diz uma coisa e faz outra. O que será que há contra mim? indaga em silêncio. Sem resposta, a preocupação parece sufoca-lo.

Quantos problemas, meu Deus!, raciocina.

Adhemar permanece em La Paz, onde será julgado o processo de extradição. Se perder, será reconduzido algemado e preso ao Brasil, ele então contrata para sua defesa um advogado e retorna a Cochabamba. Uma semana depois, a pedido do advogado volta a La Paz para conhecer o parecer do Procurador Geral da República, que nega a extradição.

Feliz pelo bom êxito dos seus esforços, ele resolve agradecer ao procurador a quem procura no palácio da Justiça.

O índio levanta-se e estendendo a mão direita diz:

Com a esperança de vencer o processo na suprema corte boliviana, Adhemar retorna a Cochabamba, onde chega um velho amigo brasileiro, o poeta César Dias Baptista, seu antigo secretário particular. César leva-lhe notícias de casa, da mulher, dos filhos, e de seu habeas-corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal. Ele esteve com o presidente Juscelino Kubitschek, um dia antes de viajar para Cochabamba e leva ao chefe novidades:

Estonteado, o político paulista fica boquiaberto, pois de quem esperava um verdadeiro gesto de solidariedade acaba de receber uma reprise da primeira história que desdenha de seus escrúpulos e o afronta.

E fica atônito. Estaria Juscelino por um lado querendo parecer simpático aos adhemaristas e, por outro, agindo de má-fé com o colega de medicina, que derrotara na eleição presidencial de 1955?

Para estas perguntas não foram encontradas respostas nos arquivos da família de Adhemar de Barros, mas o seu amigo de todas as horas, companheiro leal, Erlindo Salzano manifestou a convicção, ao autor deste livro, de que o pedido de extradição foi enviado ao Paraguai e a Bolívia sem o prévio conhecimento de Kubitschek, que tinha o hábito de assinar sem ler documentos provenientes do Ministério de Relações Exteriores.

Para atenuar a tensão e arejar as ideias, o político paulista viaja a Santiago do Chile com a permissão do governo boliviano. Mas, no aeroporto, recebe voz de prisão sob a acusação do Ministério brasileiro de Relações Exteriores - com um ofício do governador de São Paulo, Jânio Quadros - de ser um "fugitivo "de alta periculosidade." da Justiça

Na confusão que se estabelece com grande curiosidade popular entra o adido comercial do Brasil no Chile, Assunção Viana, que acabara de chegar de um voo e pede para ser preso, se Adhemar for. O governo chileno é consultado, horas depois resolve aceitar a permanência em seu território do político paulista, sem molestá-lo. Superado o conflito, Adhemar toma uma decisão: deixar o Chile e seguir no próximo avião para a Argentina.

Em Buenos Aires, aluga um apartamento onde fica com a mulher, dona Leonor Mendes de Barros, que o encontrara na Bolívia, à espera do julgamento do pedido de habeas-corpus apresentado ao Supremo Tribunal Federal pelo seu advogado Oscar Pedroso Horta. Chega o dia da decisão final: por unanimidade de votos dos ministros do STF o ex-governador é absolvido no processo que o levara ao exílio.

No mesmo avião com o qual fugiu da polícia do governador Jânio Quadros, seu arqui-inimigo, Adhemar de Barros volta ao Brasil. Quando o aparelho entra no espaço brasileiro, ele comove ajoelha-se e reza em voz alta.

Depois declara:

"Um homem tem a obrigação de levantar 11 vezes, se cair por dez vezes."

O ex-governador pisa o solo brasileiro e verifica que, após três meses de fuga, São Paulo continua a mesma cidade de quando saiu: vielas e becos ainda com lampiões a gás, ruas iluminadas por lâmpadas incandescentes e servidas por bondes, sua população de 2 milhões de habitantes beira os 3 milhões e correntes migratórias continuam trazendo mais e mais pessoas atraídas pela possibilidade de progredirem no seu mercado de trabalho.

Fim.

Sobre o autor

Carlos Laranjeira

O autor deste livro, Carlos Laranjeira, historiador e jornalista, é autor também de 13 outros livros. E assina dezenas de artigos sobre o ex-governador paulista, alguns dos quais são referência de trabalhos acadêmicos.

Para contato, envie um e-mail para Carlos Laranjeira.